sábado, 28 de maio de 2016

Nós, mulheres

Ser mulher é sangrar todo mês e aprender a conviver com as dores da menstruação. É temer andar na rua e dar de cara com um machista. Ouvir piadinhas de mau gosto e, quando for responder à altura, ainda ter que escutar que "falar palavrões ou besteiras" não é coisa do sexo feminino. Ainda precisamos tomar cuidado para não ser agredida, pois as estatísticas afirmam que, a cada duas horas, uma mulher é estuprada no estado do Rio de Janeiro. E o pior: esses crimes ganham uma repercussão discreta, a violência contra as mulheres é banalizada. As gerações de machistas e criminosos vão se sucedendo. E ainda tem muita gente que trivializa o feminismo. E não é através de mais violência que este horror será resolvido. É através da educação; formação de seres humanos e cidadãos com valores dignos. Pessoas que se revoltam e se sensibilizam só de ouvir falar que esses crimes existem.

Além desta realidade cruel, nós ainda convivemos com uma cobrança intensa para estar sempre dentro dos padrões de beleza: você não faz a unha? Não? Nossa, como assim? E a depilação está em dia? E o cabelo, você alisa?

Precisamos nos unir e lutar contra todos esses padrões de beleza. Cada uma deve ter o cabelo que quiser. Não há nada mais belo do que a diversidade, aliás, pessoalmente, não acho nada mais lindo do que os cabelos cacheados, rechaçados por esta loucura de paradigma. Também não podemos mais admitir a gordofobia. A mulher quer comer e beber sem se preocupar ou sonhar em caber em uma roupa tamanho 38? A decisão é dela, somente dela. Ninguém deve se meter. Se ela pesa muito mais do que todas as outras que correm atrás para se enquadrar no modelo de formosura, a escolha é dela, com certeza, ela é feliz assim.

E a pressão para a mulher engravidar, construir uma família? O conservadorismo está por toda a parte. As formas silenciosas de violência vão se diversificando. Até mesmo homens que se consideram defensores do feminismo e dizem lutar pela igualdade de gênero agem, no dia a dia, de forma cruel: passar quase uma década ao lado de uma mulher e depois fingir que não a conhece. Quando a encontra na rua, abaixa a cabeça, como se isso fosse natural.

Ainda há os homens que insistem em julgar as mulheres pelas roupas que elas usam. Quem gostar de saia curta, batom forte não tem o direito de reclamar de abordagens violentas, pois estão vestidas de forma sensual. É tão inacreditável um homem justificar o estupro por conta do apelo das atitudes e roupas das mulheres que parece mentira. Mas não é. Tem muitos homens, infelizmente, que pensam assim. Porém, nós não podemos abrir mão da forma como desejamos nos portar. Devemos, sim, nos unir e lutar para que a gente possa sair a hora que quiser, do jeito que escolher e, o mais importante, sem medo. A culpa da violência sexual é sempre do agressor. Nunca é da vítima. Quando uma é violentada, desacordada, e sangra, todas nós sangramos juntos. As lágrimas caem e não aceitam o crime. E, mais uma vez, vale lembrar: a violência não é resolvida com violência. Vamos nos manter unidas, na luta, nas ruas, encarando o problema de frente, indignadas, em busca de uma sociedade que forme cidadãos de bem.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Olivia

Menina sapeca que nunca vi, mas conheço minuciosamente a presença doce e marcante. Já preparo os livros para recebê-la com poesia, para amenizar a dureza desse mundo onde ela vai chegar. Assim como as belas histórias e prosas, um mar de folhas servirá de tapete para os seus primeiros passos, comemorando o outono e a sua estreia caminhando.

Será que ela puxará o belo irmão, que dá o Tom da beleza e do encanto? Ou será que ela será morena, como a mãe? Tropicana, cor das caboclas da mata, que estão abençoando-a desde o ventre materno. Dentro do útero, Olivia já recebe toda a proteção e amor da madrinha, que já reza e pede a bênção de todos os guias àquela menina moleca, que vai nascer dominando a arte de ser feliz. Não importa as escolhas que fizer, sempre encontrará a felicidade, o sorriso e a leveza. Estará cercada por uma família extremamente especial, desde os tios, os avós, aos pais: a mãe, uma mulher com um sorriso maior que o mundo e uma enorme generosidade; o pai, um homem que emana sensibilidade e bom gosto.

Por onde passe, seja nos Estados Unidos, no Brasil, ou qualquer outro lugar, terá o dom de encantar, seja por sua beleza,  simpatia ou pela extrema bondade que refletirá de seus olhos. Se depender da dinda, Olivia, você será uma grande leitora e apreciadora de música. Espero que, um dia, a gente cante juntas Paulinho da Viola, Cartola, entre outros.

Onde quer que você esteja, no mais confortável esconderijo, quero que sinta todo o amor do mundo. Receba toda a poesia aí dentro da sua amada mãe. Quando você nascer, já terá uma biblioteca, em construção, te esperando. E, como diz Paulinho da Viola, que você venha aprender a falar com os passarinhos, a dividir com quem não tem, a fazer tudo o que sente e a viver do presente.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

A dose do santo

Sempre ouvi dizer que dose de cachaça não se pega de ninguém: não se rouba nem um tico sem pedir licença. Cachaça é pessoal, na dose exata do santo e de sua oferenda. Quem bebe a dose de cachaça dos outros padece na vida. Já quem divide sua garrafa generosamente garante amigos verdadeiros, capazes de compartilhar um momento intenso de encontro com o céu. Para isto, estava guardando uma das minhas preferidas, a Maria Izabel, autêntica, com nome de mulher charmosa. E não é que minha garrafa sumiu? Ela tinha destino certo, de agregar amigos e de agradar os santos, no entanto, um desalmado levou-me inteira. Fiquei sem o gosto docinho na boca, à espera de mais uma viagem à Paraty, terra da danada. E quem tomou? Não me interessa. O santo cuida deste Zé ruela melhor do que eu.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Para a avó Jandira


Ela nasceu em um reino encantado que até hoje não recebeu nome. Dizem que fica na região de Andaluzia, na Espanha. Talvez por isso, em sua casa, há flores e azulejos por toda parte. Em seu corpo, as rugas fininhas e a pele alva vão criando um caminho longo, com nascente desconhecida. A memória apagou os primeiros anos de vida daquela senhora de seus mais de 80 anos. Quando perguntavam sobre sua mãe, ou sua história de vida, ela pegava o leque florido - com firmeza - e começava a se abanar. Logo, uma lágrima rolava e encontrava um atalho no meio da pele macia, com marcas do tempo e contornos que misturam uma história oculta entre a Espanha e Brasil. No meio de tudo, estava ela, sempre atenta pra não perder mais nenhum pedaço de sua trajetória. Assim, o mecanismo de defesa foi manter o rosto sério, sempre em alerta. Olhinhos brilhantes, uma serenidade infinita, e mãos suaves de quem é capaz de abraçar o mundo - além dos filhos, netos e bisnetos-, seguindo a correnteza do tempo, à margem do rio, e pedindo a Deus para que sua fonte nunca seja capaz de secar; esteja ela onde estiver.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Novo amor

Todo amor começa no Recife ou em Olinda. Nos becos e ladeiras, à margem do Capibaribe, na orla de Boa Viagem, o som é sempre de encontro. Há uma brisa quente que sopra paixões. Assim, até o mais descrente torna-se absolutamente louco e irracional diante um outro ser, em um sentimento que ferve.

No Recife e em Olinda, as pessoas andam nuas, por maior que seja a quantidade de roupas que elas estejam usando. Não importa. Os corpos gritam, os sentimentos fluem e abraçam até alcançar o mais profundo nó entre os peitos suados, respingados de palavras cuspidas.

Fala-se de dor o tempo inteiro, pois, nesta terra, se reconhece, sem medo, este sentimento que predomina após o amor. Todos sabem que não há tempo previsível de cura, nem receita certa. Por isso, abrem uma cachaça porreta para afastar os maus pensamentos e reunir boas companhias. Também é constante a presença de um abraço pernambucano que chega de surpresa, com mais força do que as pernas das passistas de frevo, e com a precisão das alfaias do maracatu.

Enquanto isso, a brisa continua quente, sem dar refresco. Chega a dar um nó na garganta, talvez, por saber que os dias em Pernambuco são curtos; ou os pernambucanos e seus lugares são longos e grandes demais para uma simples visita. Porém, o alívio prevalece, pois a angústia e a mágoa voam em Olinda, mais precisamente em direção ao mar. Assim, podemos rir, falar bobagem, até se pegar totalmente paralisada com o sotaque cantado da terrinha.

De repente, tudo é pausa. Tudo é a voz daquele recifense na Bodega de Véio. Não tem jeito. Sempre que venho, ali estou, e garanto que nunca havia o encontrado. E desta vez, ele estava; e eu também. Ô, sorte. Encontro marcado? Talvez. No entanto, prefiro acreditar na beleza do acaso.

Eu, vidrada com sua guia de Xangô, com sua camiseta celebrando Chico Science, e com aquele sotaque irresistível invadindo todos os cantos de Olinda, não conseguia disfarçar o encantamento imediato. Era incapaz de falar, apenas de ouvir. "Pernambucana?", perguntou. Antes que eu pudesse projetar uma resposta, ele completou: "se depender de mim, daqui você não sai". E pronto. Resolvi admitir que sempre fiz parte dali.

domingo, 22 de março de 2015

Luto

Quando Pedro resolveu ir embora, levou minha motivação de acordar para vê-lo de olhos cerrados, até o momento exato em que o despertador iria forçar aquelas folhas verdes esvoaçadas a caírem no mundo, carregando aquelas pernas finas, que mais pareciam de mulher. Motivos de implicância garantiam as gargalhadas cotidianas, a cumplicidade e os silêncios acolhedores. Um amigo, sim, companheiro de vida, de tudo. Um irmão.

Reconhecia na sua insanidade uma coerência absurda. Fazia-me entender que seguir em frente é sempre a melhor forma de perder-se dos fantasmas. E agora, Pedro, seguir em frente sem você é possível? Sinto todos os nossos fantasmas, inseguranças e neuroses percorrendo nossa casa. E você com aquela mania de deixar a porta aberta para circular o ar, ventilar. Você sabe o quanto isso me irritava. Tentava disfarçar às vezes, para não ser chata, mas convenhamos que a porta fechada sempre foi o mínimo de privacidade que gostaria de usufruir. Enfim, que babaquice, não é o momento para debatermos essa questão.

Agora que você, meu irmão sensível, capaz de sentir toda a dor e toda a felicidade do mundo ao mesmo tempo, que vibrava por um amigo como se estivesse fazendo-o por um filho, desapareceu, as palavras fogem. As reflexões e leituras diárias desaparecem, com todas as referências. Tábula rasa, com lágrimas congeladas. Resolvo escancarar todas as portas imaginando sua presença e tentando sentir o bem-estar trazido por aquele vento abafado que adentrava nossa sala.

Queria eu ter feito isso mais vezes, me posicionar de frente à porta, ser surpreendida pelo vento nas costas para lembrar da sua gargalhada entrando em casa. E os apelidos diários criativos que duravam alguns minutos na nossa memória, mas agora marcam a ferro meu coração. Aquela história de sua gargalhada no rádio, seu bom humor na minha vida, sua presença ao meu lado era toda verdade. Completamente louco isso tudo, como nós dois, em nossa dinâmica da maluquice, nos compreendíamos e nos amávamos incoerentemente. Nada fazia sentido, e agora há a maldita dor física encravada no peito. Ele, que sempre conseguiu tocar nas minhas feridas mais profundas, não está mais por aqui para achar o ponto de tensão e mexer insistentemente para tirar os nós e me fazer sorrir. Amputar a melhor parte da sua vida é uma experiência que não desejo a ninguém.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Mulheres passarinhas


Ainda não é 8 de março, mas já é Dia Internacional da Mulher. A cada dois minutos, cinco mulheres são espancadas no Brasil. Na TV, as propagandas de cerveja colocam corpos esculturais gelados à disposição dos homens. As curvas em formas de peitos e bundas passam servindo a bebida, sendo alvo dos olhares de “admiração” e “desejo”. A mulher-objeto não tem voz, ela é instrumento sexual, fetiche, apesar de não se colocar nessa posição, não se sentir à vontade com o assédio ou simplesmente detestar qualquer tipo de abordagem sexista.

Enquanto o comercial anuncia o corpo perfeito e vende cerveja para o gênero masculino (ignorando completamente que as mulheres também são consumidoras de bebida alcoólica), uma, a cada cinco mulheres, considera já ter sofrido “algum tipo de violência de parte de algum homem, conhecido ou desconhecido”. Algumas não sabem explicar o tipo de agressão: muitas vezes, a hostilidade é silenciosa, em locais onde o machismo é questionado, porém, não combatido de maneira eficaz, como em ambientes de trabalho. O Brasil, por exemplo, representa uma das mais desiguais relações entre gêneros: em 2013, o Índice Global de Desigualdade de Gênero, apontou que os homens ganham aproximadamente um salário 30% maior do que o das mulheres com o mesmo grau de instrução e a mesma idade.

Também relacionado ao universo de emprego, apesar de proibido por lei, quantas companheiras já não ouviram histórias de demissão após o retorno da licença-maternidade ou já foram questionadas em entrevistas de trabalho se pretendem ter filhos? A famosa dupla-jornada não é bem vista pelo patrão. Não importa se as mulheres dedicam-se cerca de 21 horas por semana às atividades domésticas, enquanto os homens gastam no máximo 10 horas cuidando do lar. Também não interessa se todos os seres humanos dependeram de alguma mulher para colocá-lo, aqui, neste mundo. A lógica do machismo predomina e avança.

Quanto às relações afetivas e sexuais, a mulher, mais uma vez, é colocada no papel de objeto. No início de 2015, um dos principais sites brasileiros colocou no ar a seguinte enquete: “Você acha que o beijo forçado no carnaval é natural?”. A própria pergunta já desmascara uma lógica asquerosa de que as relações são movidas à força, em uma dinâmica desigual e criminosa. No mesmo período, uma marca de cerveja criou diversos slogans que estimulam a violência sexual, com dizeres do tipo “esqueci o não em casa”. Esse é o machismo encravado, regulado e legitimado pelos nossos governantes, pela nossa imprensa e, finalmente, pela nossa própria sociedade.

A construção dessa dinâmica de forças, em que o gênero feminino é sempre subordinado, ganha ainda mais relevância entre quatro paredes. Em mais de 80% das agressões sofridas por mulheres, o marido ou o namorado é o criminoso. Assim, a vida privada torna-se central na luta contra o machismo. Entretanto, as agências publicitárias ignoram essa realidade e ainda apelam para campanhas em comemoração ao dia da mulher, levantando a bandeira do consumo, da vaidade e da valorização daquela que cuida do lar. Existem, sim, donas de casa, mulheres vaidosas, consumistas, assim como as socialistas, educadoras, economistas, engenheiras, atrizes, vendedoras, atletas, médicas, militantes, pesquisadoras, magras, gordas, altas, negras, morenas, louras, ruivas, baixas, entre infinitas categorias incapazes de abranger o imenso universo feminino. Desta maneira, nada ou ninguém conseguirá representar a diversidade do gênero feminino, a particularidade de cada mulher, seu desejo mais profundo e seu direito de ser respeitada. Reconhecendo tantas diferenças, nós mulheres devemos sempre nos lembrar: toda mulher é minha amiga, mexeu com ela, mexeu comigo. Machistas não passarão! Nós, passarinhas.