quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

A coordenadora

Tudo tem que ser coordenado por ela. Não, ela não ganha e, muito menos, vive disso. Não é sua profissão, mas é seu dom natural. Assim, no seu grupo de amigas, a moça foi eleita coordenadora, sem o direito de hesitar.

A primeira vez que ela apareceu nas aulas, todo mundo ficou surpreso com sua elegância. Se equilibra com perfeição, olha pra frente com segurança, escapando de qualquer tipo de prepotência ou arrogância. Ela diz que é mineira, mas eu não acredito. A sua gargalhada escrachada, as suas piadas e ironias - sempre - na ponta da língua são opostas ao jeito estereotipado e calado mineirinho de ser.

Tem sempre uma boa história, e, quando não tem, ela inventa. Como no dia em que criou uma paixão por um homem que estava na mesa da frente de um bar - detalhe - com a sua esposa ao lado. "Ele sabia cantar todas as músicas que eu gosto", justifica. No entanto, mal sabe ela que não deve nenhuma explicação. Essas loucuras fazem parte de seu carisma e do seu poder de sedução.

Toda graça está na forma que ela segue seu caminho. Dramatizando ou gargalhando da sua própria vida, tornando-a uma bela seresta de amor, regada a muitas tequilas, cervejas, uísque ou o que vier pela frente.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

A analista

Diferentemente de toda analista, ela não me julga. Analisa sem olhar de cima abaixo. Fala suavemente. Teima em deixar escorrer uma lágrima quando o assunto é doloroso.

Quando o paciente chega cabisbaixo, ele nem precisa falar nada. Ela o coloca, literalmente, no colo. Faz massagem em seus pés, utiliza as suas mãos firmes para retirar toda a dor dos ombros alheios, nem que seja na marra.

Ela tem cachinhos dourados, parece um anjo. Mas é mulher das fortes. Sem dúvida, uma das mais sensíveis que encontrei. Às vezes, quando vou ao seu consultório, só de me deparar com aquele doce olhar, já me sinto melhor. Em outras, fico com vergonha de admitir meu fracasso, pois sei que ela sente a decepção por mim. Ela é profissional em sentir, em carregar a cicatriz do outro, sem jamais deixar de sorrir. As derrotas dos pacientes são delas, o tempo de consulta é a entrega total. Esbanja amor, profissionalismo.

O único momento em que a vejo insegura é quando a lágrima insiste em cair. Nessa hora, ela olha pro lado, improvisa um movimento de mãos, e tudo volta para o estado da normalidade. Eu finjo não perceber, afinal, quando ela chora tenho certeza que a emoção faz parte de mim.

Refém da Solidão


(...)

"E essa vida é uma atriz
Que corta o bem na raiz
E faz do mal cicatriz
Vai ver até que essa vida é morte
E a morte é
A vida que se quer".

(Paulo César Pinheiro)

Assumo:
sou refém da solidão.
mas ela me basta.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Sem um canto

E quando você não tem um canto? Ao abrir o espelho, você dá de cara com outra? E, ao abrir o seu armário, nada está mais lá?... Está tudo usado, com aquele cheiro impregnado de cigarro, seu vestido novo está rasgado, com um rombo de desrespeito.

O presente que o namorado te deu viajou com a outra, não está em suas gavetas... não está em nenhum lugar, apenas pode ser visto nas fotos postadas por aí... Você encontra o que era seu em um papel fotográfico, mas não consegue rever nunca mais. Sua calcinha preferida também sumiu, manchada pelo corpo de outra.

Espaço dividido torna-se área livre para sujeira. Restos de comida, roupas íntimas jogadas no chão, toalhas molhadas por todos os cantos. A roupa de cama encardida tem cheiro de podre. O seu lado branco é irreconhecível. As suas fotos no mural estão ao lado de pessoas desconhecidas, com jeito estranho, com olhar desconfiado.

E a sua cama está ocupada. Uma pessoa cheia de perebas está ali. Você não a conhece, não sabe como veio parar em seu ambiente. Ao mesmo tempo, você evita fazer barulho para não acordá-la, pois um medo de assustar te aflige... No entanto, neste instante, você se lembra que está sendo invadida, que o medo deveria ser seu, o pânico de ser ocupada por um outro ser faz parte de você - e este sentimento, de ti, ninguém pode tirar. Sem canto, sem paradeiro e sem nenhum encanto.

Seu Jair e Seu Argemiro


Eu me lembro bem. Estava no Teatro Rival, com meus 16 anos. Não entendia nada de música, nada de samba, mas sentia que gostava da Portela.

As luzes se apagaram. De repente, o palco tomado por aquele azul e branco em forma de manto cantado por Paulinho da Viola. Seu Argemiro Patrocínio, em sua frágil saúde, engrandecia diante de uma plateia perplexa. Seu Jair do Cavaquinho, com seu charme em forma de sapateado, dominava todos que estavam sentados diante dos holofotes do teatro.

E, eu, ali, testemunha daquele show. Tanto Jair, como Argemiro não estão mais entre nós. No entanto, eu nunca esqueço do dia em que o samba penetrou em meu peito, graças a estes dois portelenses, que fiz questão de seguir em todas as suas apresentações até o dia em que eles resolveram partir. Não são meus parentes, não são meus amigos. Mas os dois fazem parte de mim. A imagem deles está na minha memória, o gingado e o sorriso marcados em meu corpo. Desta forma, a Portela se aponderou de mim.

HD externo

Tanta memória
pra uma só cabeça

Tantos sorrisos
para uma boca frágil

Amigos...
que se perdem
e que se encontram
em fotografias

dias que se foram,
mas que permanecem
retratados
na tela do computador.
afinal, quem ainda revela foto?

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A Gorda

Em qualquer lugar por onde ela andava não tinha jeito. Todos olhavam, com aquele inconfundível olhar de pena. Alguns comentavam entre si: "Coitada, tão gorda, mal consegue se locomover". "Seria melhor ela sair rolando", uma adolescente gargalhava com sua amiga.

Ela sabia que era gorda, afinal, tinha espelho em casa. No entanto, nunca havia conseguido emagrecer. Na verdade, não. Uma vez a mulher perdera 3 quilos. Aquilo foi uma vitória, porém, ninguém, nem mesmo os seus pais, percebeu a diferença. Assim, em pouco tempo e muitos doces a mais, a normalidade da balança se consolidou de vez.

Já estava conformada em ser gorda, apesar de toda aquela massa adiposa extra lhe fazer sofrer - e muito. Quando começava uma dieta ou um exercício físico, as pessoas ao seu redor a ironizavam. "Filha, futebol é impossível para uma pessoa tão sedentária como você", dizia a mãe. Já o pai, que acabara de voltar de uma viagem ao exterior, provocava: "Trouxe vários chocolates Lindt, pena que você não pode comer nenhum".

Assim, toda vez que pensava em emagrecer, mais ela se afundava na solidão de seus quilos preponderantes. Ninguém levava a sério a sua vontade de se tornar esbelta, do desejo camuflado de se vingar de todos os olhares assustados, de todas as ironias e apelidos que foi obrigada a conviver. "Um dia, todos me verão magra", sonhava.

Só de pensar neste dia, uma agonia e ansiedade lhe tomavam o peito. Uma raiva de todos aqueles que já se colocaram em posição de superioridade por serem magros a penetrava. Era um sentimento tão forte, uma angústia tão latente, que ela não resistiu: foi ao supermercado comprar um chocolate para relaxar.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Uma noite ganha

Corria desesperadamente. "Cuidado pra não tropeçar", gritaram de longe. Ele nem ouviu o conselho, pois estava ansioso ao extremo, além de ter muita pressa.

Entrou pelo portão de casa, imediatamente avistou sua mãe.  "Eu vi muitas luzes unidas, todas cintilantes, no meio do céu preto", gritava o filho, sem disfarçar a empolgação.

"Mas o que era, afinal, querido?", perguntou a senhora desconfiada. "Mãe, eu não sei explicar, não sei o que era. Talvez fosse a união de centenas de holofotes, talvez fosse a lua cheia. Mas não importa, tenho certeza que foi a mais bela visão que tive". 

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Menina medrosa

Ela vivia assustada. Morria de medo de insetos, de elevador, de altura, de ser assaltada... Tudo era motivo para levar susto ou ficar em alerta. Qualquer barulho, por mais silencioso que pudesse aparecer, transformava-se em um trovão em seus ouvidos.

O sopro do vento também era suficiente para que a menina ficasse tensa, pois imaginava que seria um bicho pronto para te dar o bote. Dirigir, então, era algo bastante complicado. A qualquer momento poderia vir um assaltante, um motoqueiro ou um ônibus cortando o seu carro pela direita.

Na vida, ela não tinha sossego. Era medrosa, tensa. Seus ombros nunca descansavam. Carregavam todas as neuroses do mundo em um só corpo. Os olhos também eram incapazes de relaxar, mesmo à noite. Era só chegar às 22 horas, que o pânico penetrava em todos os seus órgãos, carregados por todas as veias existentes. Não podia ver a madrugada se aproximar, que era dominada pelo medo de descansar e de, finalmente, dormir. Ela não conseguia de maneira nenhuma fechar os olhos e relaxar. Assim, corria o risco de fugir dos temores e, quem sabe, encontrar um sonho belo. Este, sim, era o seu maior medo: superar todas as suas angústias e se perder no meio de toda transformação.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Giulietta Masina

Ela é doçura, sensibilidade, graça, ingenuidade, força poética. 

Gelsomina seguiu sua estrada circense com o seu trompete. Não sabia tocar, nem mesmo lidar com as algemas. No entanto, tinha uma família para alimentar. Assim, aprendeu rápido a encarar a grosseria - em seu rascunho mais profundo. Teve que redobrar sua sensibilidade e paciência. Transformou-se em artista em busca de uma promessa de amor e de paz de espírito. Mas a brutalidade prevaleceu. 

O trompete calou. As lágrimas não secaram, dando espaço para um abandono guardado no mar. As ondas, em suas idas e vindas constantes, deram-lhe a certeza de que o seu redor era apenas espinho. A graça estava nela, em seu caminho e em suas belas melodias de sopro. Quando percebeu que já estava completa, que não precisava se prender a mais ninguém, ela se entregou às ondas, soltou as correntes e eternizou o mais lindo poema, chamado Giulietta Masina.

domingo, 11 de dezembro de 2011

As Canções
















Não sei como os outros fazem para se lembrar das coisas sem ter uma música por trás. Não sei como encarar a câmera e dizer o que mais te faz chorar sem conhecer, sequer, quem está na sala escura ouvindo o seu depoimento. Não sei lidar com exposições, ainda mais deste tipo, do mais íntimo, do mais profundo, talvez ridículo, cômico, doloroso, não cicatrizado sentimento em forma de melodia.

Como pensar naquele que te fez, te faz e, quem sabe, fará uma ferida eterna em seu corpo, em sua mente, e ainda ter coragem de contar para um público misterioso toda a sua história emoldurada por uma dor que não quer calar?

Admiro tanto a coragem de todos que cantaram, choraram ou apenas sentaram na cadeira e contaram uma história de sua vida. Agradeço a todos que fizeram isso e se aproximaram de todos nós, que temos uma ou mil canções de vida, que cantamos no chuveiro, no ônibus ou sozinhos na rua, e que possuímos alguma ferida latente, que pede remédio e ainda não foi capaz de cicatrizar.

Cristo




Dormi abraçado
com a lua cheia
implorando
pra não amanhecer

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

entreouvido por aí (Flip 2011)

A vida tentou me esperar,
mas me interessava o que não era meu.
não consegui voar
nem ouvir a flauta doce do poeta

Procurei o conselho
de quem tudo sabe
avô, avó e preto-velho

mas o silêncio continuava
e o descuido também.
não gostava de gente,
muito menos do espelho.

um dia resolvi unir palavras
num papel em branco.

neste dia entendi
que o silêncio não basta.
As palavras denunciam
elas expõem
o esconderijo
interno
que a mente
tenta camuflar.

percebi, então,
que a poesia jamais
vai me calar.

senhas

São tantas senhas
de passagem
de entrada e saída
de bloqueio
de saque

Devo guardá-las em segredo
anotá-las no escondido
bloquinho obscuro

Afinal, ninguém deve desconfiar
da minha combinação
de números e letras...

Até eu tomar coragem
e me desvencilhar 
desse passaporte privado 
que me leva à loucura

Até eu implorar para qualquer um,
estranho, louco, desconhecido
decorar todas as minhas senhas
secretas e indecifráveis

busca permanente

















Eu busco a poesia
nas grades
na dor
no limite
em toda repressão

Quando encontro a poesia,
eu escapo...
do meu próprio esconderijo.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Saída de emergência

E chega dezembro. A época do ano em que mais recebo telefonemas, mensagens e, até mesmo, sinais de fumaça. Sabe aquele colega - detesto essa palavra, mas neste caso é inevitável- de trabalho que você nem se lembrava mais? Pois é, ele te enviou um e-mail desejando um próspero Natal e Ano Novo. Próspero? Esta é outra palavra deprimente que só escuto nestas datas comemorativas de dezembro.

E tudo conspira, junto com o repentino aparecimento do colega de trabalho, você recebe mensagem de todos os vendedores de lojas, inclusive, daquela que entrou apenas uma vez para comprar um presente para a sua avó. Mas todos eles estão ansiosos por sua comissão nas vendas de fim de ano e, por isso, fazem questão de te encontrar. Assim, ligam, mandam e-mails e SMS para anunciar o horário de funcionamento das lojas, suas promoções e vantagens para pagamento de presentes de Natal.

Ainda neste período festivo temos os incríveis "amigo-oculto". No meu caso, são três. O da faculdade, o dos amigos do colégio e o da família. E as expectativas são as mesmas de sempre: ou você vai ganhar um presente detestável, ou você vai tirar a pessoa que menos tem contato. E, é claro, que para completar, ainda vai ter que passar pela dolorosa etapa da descrição do seu "querido amigo oculto". A parte do constrangimento, a gente é obrigado a ignorar.

Neste ano me planejei para tornar dezembro um mês menos desagradável. Estou com os presentes dos meus amigos em mãos - para evitar o assédio de vendedores e lojas sedentos por dinheiro - e já coloquei o spam automático para qualquer e-mail com a palavra Natal, Próspero, Ano Novo etc. Agora, só falta construir uma saída de emergência para fugir das mesmas perguntas dos primos distantes em plena ceia de Natal - você trabalha em qual área mesmo? -, de preferência, com ar-condicionado central. Vale sempre lembrar que eu não sou chester ou peru para ficar no forno.

Angústia















dor que assola
cafeína na veia
chocolate na boca
pontada no peito

pés com bolha
esmalte descascado
dedo roído por inteiro

gotinhas na colher
agulhas nas costas

vermelha a faca
cravejada
e angustiada
no mesmo
dolorido peito

no lixo.


Ele dizia que tinha problemas psiquiátricos. Não podia encontrar um conhecido, que já contava sobre sua rotina de remédios tarjas preta e vermelha. "A receita fica apreendida na farmácia, então, é uma batalha não esquecer de levar o frasco para todo lugar. Imagina, como vou poder comprar sem a receita?", se lamentava com o vizinho.

No fundo, ele sabia que a história das receitas do Rivotril, Lexotan e Sulpan já eram velhas conhecidas de seus poucos conhecidos. Evitava sair de casa, exceto para ir ao psiquiatra. Eram três consultas por semana. Até mesmo em feriado o Doutor o atendia. E ele, responsável, nunca havia faltado uma consulta, sequer havia chegado atrasado.

Um dia saiu na rua e esqueceu seus vidrinhos de remédio. Buscou em todos os bolsos, carteiras, e nada. Foi direito ao psiquiatra conseguir uma receita. Com o papel em mãos se tranquilizou, afinal, agora, poderia comprar seus remédios em qualquer farmácia.

Assim, resolveu caminhar. O consultório ficava na Rua São Clemente e ele nunca tinha passeado por ali. Reparou na vista do Cristo Redentor, guardou a receita na carteira, e foi andando sem pressa.

Passou por diversas farmácias - mas não parou. Observou a quantidade de carros em fileiras, com seu faróis ligados ao entardecer. Viu as mesas dos bares começando a encher de trabalhadores em seu pós-expediente. Até os vidros da academia de ginástica o paralisaram, afinal, nunca tinha reparado na quantidade de gente que fica correndo nas esteiras de frente para uma das ruas mais movimentadas do Rio. Passou novamente por uma farmácia. Desta vez, ele parou. Foi em direção ao lixo e jogou sua receita médica ali mesmo. Esqueceu os medicamentos e continuou a caminhada.