sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Algumas doses

Acabou-se com um atraso de anos e incontáveis mágoas presas. Daquelas difíceis de colocar pra fora, nem com uma porrada na cara aquele bolo de sentimentos misturados era capaz de construir-se em uma frase compreensível. Durante o tempo o açúcar cristaliza, já o amargo vira pus, infecção não diagnosticada, escondida embaixo de muitas camadas de pele que camuflam o cheiro podre de palavras não ditas, verbos inexistentes e lençóis amarelados esperando a hora de serem jogados fora.

Não sabe como decidiu que havia se atrasado para ir embora. No entanto, quando foi, pegou tudo que havia construído durante anos e partiu. Tudo se resumia a quase nada. Anos construídos por afetos destruídos em poeira de apartamento miúdo, em obra inacabada que impregna os olhos de cisco, deixando a realidade turva. Colocou o que restou de tanto tempo, o que havia sido salvo pelo mofo e decidiu seguir. Apesar de todas as cores e fotos lembrarem o atraso, estava cansada de ter perdido a hora.

Era a hora de seguir. E resolveu colocar a cabeça para esquecer toda uma vida. E está nessa até hoje. Segue na luta, tirando o pó, contrariando as lembranças, as músicas, as expectativas. Insiste em aprender a ser só e a reaprender a caminhar. Toda vez que acha que se livrou das mágoas, vira algumas doses de cachaça para lembrar que a dor faz parte de si. Na tristeza se reconhece e se abastece. Desce mais uma dose de cachaça para melhor instruir-se na tarefa de viver.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Não

Irritavam-me profundamente as palavras descomedidas que saíam de sua boca naturalmente. Nunca era capaz de perceber quando cometia alguma gafe ou excedia-se nas piadas. Aqueles dentes em demasia, o sorriso espontâneo cativando todos ao redor da mesa. Tudo aquilo transformava-me em um bobo observador. Às vezes, perdia-me em seus gestos nada meticulosos, mas com uma elegância de gente que sabe se impor e assume o que quer.

Talvez essa sua vontade expressa em cada parte de seu corpo, em cada pausa da sua voz grave que sabia dizer exatamente o que se passava dentro da cabeça esperta, prendera-me a ti. A sua certeza era a resposta para meu silêncio eterno. Uma mulher que não tem medos de ouvir não, de dizer sim e de parecer inadequada. Aliás, imagino, você nunca deve ter pensado sobre adequação, normas sociais. Enquanto muitos se paralisam diante da dúvida e da insegurança, você simplesmente já escolheu seu caminho. Mesmo sem querer, ainda é capaz de me dar outra lição, ensinando-me que não basta fazer as escolhas, é preciso assumi-las e saber que, muitas vezes, elas serão equivocadas. E aí, você começa a gargalhar contando seus fracassos, suas histórias de amores platônicos - para desespero do meu sentimento de posse-, as situações desagradáveis e as vergonhas que passou. Como sempre, transformando-as em ótimas histórias a serem compartilhadas.

Porém, agora, percebo o quanto me incomoda lidar com a sua naturalidade em viver. Quando prefiro recolher-me em cicatrizes, você mergulha antes de saber se o mar será capaz de te abraçar. Observo a sua maneira torta de caminhar pelas ruas, sempre olhando para os dois lados, admirando cada espaço do céu, e se esquecendo de ser cautelosa com os buracos no asfalto. "O máximo que pode acontecer é eu tropeçar", você dizia, com um sorriso no rosto.

Mesmo quando te vejo só, nunca te vi desamparada. Os seus braços são capazes de agarrar o mundo, da mesmo forma que sua voz emana a condição apaixonada de tropeçante pertinaz. Uma mulher que deixa o vestido voar no bueiro, imita o rapaz grosseiro que é obrigada a conviver, entorna a dose de cachaça de uma só vez e sabe reconhecer quando uma relação chega ao fim. Deveria eu ter aprendido a aproveitar o seu tempo de sim para, agora, ser obrigado a entender e a lidar com o seu singelo não. Não expressamente dito, de forma clara, nada sutil, e certeiro em seus passos de negação.

sábado, 8 de novembro de 2014

Era ela, era eu

Havia chegado antes da chuva, a tempo de me esconder embaixo dos Arcos. Estranho estar ali, sozinho, naquele local onde sempre estava a dois. Contudo, o tempo já havia passado e os meses embolados transformaram-se em quase dois anos de ausência. Não lembrava como era estar só e, ao mesmo tempo, sentia-me absolutamente desamparado ao lado de qualquer pessoa que não fosse ela. Sem perceber, já fazia parte da fila para comprar ingressos para um show nada especial, quando surgiu um amigo atravessando os pensamentos.

Era ela na cabeça e ele ao meu lado. Não sabia se deveria olhar nos olhos do cara, pois encarar dificulta qualquer estratégia de deixar a mente correr solta. Porém, divagar tornara-se um hábito incontrolável e, sim, de fato, deveria forçar-me a prestar a atenção ao papo sobre... perdi o início. Perguntou-me algo, mas agora realmente não sei o que dizer. Peço, por favor, para repetir. Ela já era. Sobraram os Arcos, a fila, a chuva, com a maioria de rostos desconhecidos, e ele, gente boa, perguntando sobre filhos.

Cara, então, poderia ter um molequinho ou uma menina de nove anos, mas na época resolvemos tirar. Porra, quem sabe estaríamos juntos, com o filho. Inconscientemente falava no plural, merda de ato falho. Às vezes, também notava que a conjugação verbal embaralhava-se, passado, presente, futuro, tudo misturado com lamentações. Muito poderia ter ocorrido. Se o tempo tivesse passado de outra forma. Papo brabo esse de filho. Como seria agora ser pai? Era ela a mãe, era eu o pai de ninguém. O amigo, ele, não soube disfarçar o constrangimento quando viu minha cabeça ir ao encontro dela. Talvez vocês ainda possam ter uma cria, disse, claramente em um esforço para me animar. Porém, agora eu já era novamente ela. Era ela a mãe daquele rebento vazio que fecundou em meu peito ao partir.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O gato

O gato
encara
cara a cara
todos os vizinhos do prédio ao lado
e das redondezas

sua dona insiste
em chamá-lo de filho
e de conversar com
aquele ser felino
de temperamento
levemente selvagem
com pitadas de carinho
na região da nuca e do pescoço.

Fecha os olhinhos le chat
escondendo o seu azul
pois
não é afeito a exibições e
as pessoas insistem 
em tirar fotos daquela cor tão 
profunda que existe apenas
nos olhos do gato, que
dorme escondido
debaixo da cômoda
dentro de uma cestinha
que deveria servir pão
aos convidados,
mas foi utilizada como cama
pelo pequeno conquistador.


(texto de 13 de janeiro de 2014)


terça-feira, 28 de outubro de 2014

O perdão que não veio

Doce ilusão esperar sua ligação, ouvir a voz doce, a gargalhada cotidiana, como se nada tivesse ocorrido. Por mais que eu tivesse tentado tirar de você o seu filho, bem mais precioso, além de ter sido agressivo, perdido a noção do limite, tentando te controlar, aparecendo na portaria do seu prédio, em busca de alguma prova de que você não merece mais meu respeito, nem minha expectativa, eu esperava um telefonema.

Apesar de eu não ter encontrado nenhum rastro de traição, nenhuma palavra de ódio ou jura de inimizade, sofro, talvez de forma mais intensa, pela indiferença. Você sumiu do meu Rio de Janeiro. Por onde andas? Empenho-me atrás de vestígios, fotos, marcas de seu perfume, da sua risada escandalosa, no entanto, você tornou-se um vulto. Poucos conhecidos a veem por aí e, admito, é duro saber que você continua por aí, disponível para a vida. Eu gostaria de te prender, mas não posso. Não sou capaz de dividir, valorizar, abrir mão, da mesma forma que confessar que desejo-te presa, imobilizada, é ardiloso. Sinto-te livre e ameaçadora, capaz de gritar, de dizer-me verdades dolorosas, de ressurgir da escuridão refeita, com a pele irretocável e o sorriso de sempre. Você sabe se resguardar, enquanto perco-me nas noites em claro.

Tudo ao meu redor continua o mesmo: vou aos mesmos lugares, encho a cara em busca de uma inspiração que não chega, trabalho no mesmo local e continuo, como você sempre disse, fingindo que estudo. Eu vou às aulas, mas acho aquilo extremamente desagradável. Ao chegar em casa, só tenho tempo de abrir uma cerveja ou um vinho daqueles que você escolheu durante uma de nossas viagens. Além disso, talvez tarde demais, devo reconhecer: a casa não é minha apenas.  Cada canto tem sua cara: as cores, os objetos, os quadros na parede, as prateleiras de livros e dvds. Tudo tão seu que chega a ser difícil encarar. Entretanto, há meses encaro. Já me acostumei a conviver com seu gosto, seu ambiente, como se fosse só meu.  Suas coisas ainda estão na estante como se fossem minhas. Eu não te devolvo. Sinto a falta até mesmo das caixas transparentes onde você organizava seus brincos e pulseiras. E aquela luminária de forma de lâmpada, tão inútil, onde está? Os seus imãs de geladeira e cartões postais? Gostaria de me apossar de cada coisa, pois sei que tudo aquilo está impregnado do seu olhar. Perdoe-me, deveria dizer, por estar ocupando o lugar que fora de nós dois. Perdoe-me, já deveria ter dito, por estar vivendo sozinho há tempos, ignorando tudo o que deveria envolver um casal. Perdoe-me, não tenho coragem de dizer na sua cara, por me apropriar do seu bom gosto e de sua casa. Apesar de tudo, agora, desejo que você seja feliz.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

O garoto

Desde pequeno não aprendera a dividir as atenções. Talvez por sofrer a ausência do olhar fraterno dos entes mais próximos, havia criado a estratégia de não abrir mão, jamais, do seu espaço, opinião, presença e voz. Então, por mais que se escondesse em uma casca nos momentos convenientes, na vida, em geral, sempre buscava os holofotes.

Em todos os lugares, era o primeiro a gesticular, a falar alto, a forçar intimidade com pessoas que sequer sabiam o seu nome. Se percebesse que era possível tirar proveito de alguma situação, projetava a fala de forma doce e envolvente, como uma criança em busca de doce, construindo um personagem simpático, dedicado e extremamente dinâmico.

No entanto, quando não notava necessidade de estar em evidência, pois o local não representaria nenhuma vantagem, fugia de todos. Não importava se estava acompanhado, se a ocasião pedia uma certa destreza: ele era movido pelo senso de oportunidade. E a lei da oferta servia: se não havia o que ganhar, não havia motivos para falar, sair da bolha, conversar de igual para igual.

Alguns olhavam para o garoto e o consideravam tímido, afinal, quando o seu humor não estava em um dia privilegiado, era difícil arrancar até mesmo um boa noite daqueles lábios. Porém, quem o observava sabia que ele escolhia a dedo com quem deveria se abrir. Nada de falar de problemas, defeitos, questões pessoais. No máximo, esboçar um sorriso, expor suas qualidades, na constante tentativa de construir um papel interessante, com referências culturais antenadas, conhecimentos e bom humor. Passava o tempo contando vantagens e, logo, o papo cessava. Mesmo assim, não entendia o motivo da perda de assunto.

Sozinho, não conseguia nem se olhar no espelho. As camadas de vaidade, de orgulho e prepotência o afastavam de seus sentimentos verdadeiros. Por mais que tentasse andar sempre em grupo, jamais havia sido uma companhia completa, generosa. As concessões feitas eram sempre cobradas com garantia, juros e todos os direitos extras. Conseguia atrair algumas mulheres, ter casos, no entanto, nenhuma havia tocado de fato o seu coração vaidoso e solitário.

Após os encontros, perdia-se na cama ao lado de um ser indisposto a se submeter ao seu estilo de vida tão fechado. Assim, a solução era sair de casa, esquecer o apartamento enclausurado, com as janelas trancadas, a pia lotada de louça acumulada e o chão branco manchado pelos sapatos que utiliza diariamente para fugir de sua rotina e cair na rua. Não importa o local, deve estar sempre cercado de gente, muita gente, bebidas em demasia, barulho, música, tudo que evitasse o vazio e um encontro a sós. Para ele, era impossível aguentar o silêncio da sua própria imagem. Na multidão disfarçava sua solidão em forma de vaidade. Não percebia, mas entrava num labirinto, onde estava predestinado a jamais se enxergar..

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Choro

Neste dia de sol, por que não consolidamos nossa amizade de anos e vamos à praia? Ninguém pode perder o contato assim, do nada.

A menina, tão pálida, com o rosto inchado de quem havia chorado uma noite inteira - ou quem sabe mais -, silenciou. Tentou virar pra trás em um gesto brusco, e recuou. Sentia-se incapaz até mesmo de desviar-se daquele sofrimento. Respirou fundo, focando na terapia junguiana, que durou mais de cinco anos de exercícios respiratórios e relaxantes que, agora, não valiam de nada.  Resolveu encarar o homem e procurar o olhar de quem esteve ao seu lado durante mais anos do que todas as suas analistas somadas. Não encontrou.

Desperdiçara tantas sessões terapêuticas, perdera toda a cumplicidade construída em cada segredo e a cada noite compartilhada. Frustrada, resolveu apelar para todos os conselhos e frases clichês dos amigos ao tentar segurar o choro: "ele não merece te ver chorar", "quem ele pensa que é", "você é muito para ele", diziam todos os seus queridos, em coro, num grito de apoio que entrava por um ouvido e ficava preso como um nó na garganta. Todas as palavras carinhosas, os ombros disponíveis para as horas frágeis, cada canção ouvida na tentativa de cicatrizar a ferida: tudo vinha na cabeça, entretanto, nada segurava as insistentes lágrimas.

Todos os dias chorosos de reflexão, qualquer esboço de força recomposta, desapareceram naqueles instantes. Havia sido casada com aquele homem e, mesmo com muito esforço e preparação, não conseguia reconhecê-lo. Uma completa falta de sintonia na comunicação, no toque, nos olhares descruzados.

Antes de racionalizar, o pranto falou mais alto. E o rapaz, por sua vez, deu um passo atrás e escondeu as mãos, para evitar suas marcas e sua parcela de culpa em cada lágrima derramada, em um choro latente e sincero.

O garoto estava extremamente angustiado, sem saber como lidar com a tristeza da mulher. A cena refletia o fracasso da felicidade a dois que, um dia, havia proposto. A vaidade desmoronada. Ele, que sempre posava de marido perfeito, via, à sua frente, a mulher despedaçada. E permanecia ali, incapaz de agir. "Para!", implorava em silêncio.

No entanto, ela, finalmente, havia desistido de se mostrar forte, superior, inabalável. Após a primeira lágrima, como uma vingança, uma prova incontestável da infelicidade a dois, da incapacidade de convivência harmoniosa, resolveu chorar tudo o que guardara durante anos. Restava a ele, na posição de menino, encarar o laço perdido.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Ruptura

Lembro-me das vezes em que conversávamos rindo sobre o momento da separação, tentando orquestrar uma possibilidade remota e absolutamente plausível, distante dos nossos olhos, mas próxima de qualquer estatística ou probabilidade de casais que estão juntos há anos. Ou casa ou racha. Primeira opção. Mas, e aí? Casar não impede que a possibilidade de rachar ande sempre por perto.

Assim, prevendo a dureza dos desencontros, a gente encenava nossas brigas, a separação, cada reação de um futuro distante. Por mais louco aquilo parecesse, achávamos que lidar com a possibilidade da ruptura era uma boa forma de prever a permanência daquela cumplicidade, do carinho, do afeto. No entanto, agora, de improviso, não decoramos os gestos, nem as palavras. Ficou um vazio repleto de silêncios e angústias.

Tudo no mesmo lugar desordenado. Não consigo mais identificar o que deixava aquilo ali aparentemente em ordem. Houve muitos momentos de sintonia, que perderam-se no meio das caixas de papelão, das roupas emboladas, dos móveis fragmentados. Aquele bairro caótico havia se transformado no quarteirão da paz quando comparado à minha cabeça transfigurada.

Desnorteada, sigo o caminho da volta, sem lembrar o que me fez seguir adiante. Tudo parece igual, exceto minha imagem no reflexo do metrô. Não me reconheço. Entretanto, os conhecidos que fazem o caminho oposto me cumprimentam, e eu sou obrigada a retribuir o aceno, sem esboçar um sorriso. Perdoe-me, mas não são horas para ser simpática, concluo, tentando livrar-me da culpa de parecer arrogante.

Minha boca seca prende os dentes dentre os lábios rachados. Enfio a mão na bolsa, encontro três tipos de hidratantes labiais. Por mais que eu tente me controlar, não consigo evitar o excesso de preocupação com produtos farmacêuticos e dermatológicos. Vou testando um a um, para ver qual deles surte um efeito imediato e me permite abrir a boca e gritar tudo o que está preso há dias, semanas ou meses. Não faço ideia do tempo, tudo passou rápido, mas cada dia é carregado de horas intermináveis. Percebo que a secura talvez seja sede, nem lembro a última vez que bebi um copo d´água. Porém, agora, surge outra dúvida: qual seria a minha nova estação? Exausta, decido esquecer qualquer tipo de pensamento. Resolvo encostar a cabeça e deixar o próprio trajeto do metrô me acordar em uma hora e, de preferência, em outro local mais apropriado.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O Homem das Multidões: o excesso de Margô

Existem os solitários por opção e os por falta de opção. Essa lacuna simbolizada pela palavra falta faz toda a diferença. Há falta no excesso e na necessidade de buscar alguém para se comunicar. O perfil excessivo ou compulsivo não consegue permanecer só por instantes, afastando todos que poderiam um dia se apresentar, tornando-se um solitário por vocação.

Como em todos os seus filmes, o diretor Marcelo Gomes - dessa vez em parceria com Cao Guimarães - toca no ponto mais profundo do ser humano, aquela ferida insistente em sua tarefa de nunca cicatrizar. Assim, a personagem Margô, controladora dos trens de uma estação do metrô, divide-se em olhar para o fluxo do transporte público e para o intenso fluxo de sua tela de celular. Compulsiva, ela necessita das teclas, das mãos ativas, ironicamente lesionadas e protegidas por faixas fisioterapêuticas. A continuidade do filme fez questão de alterar as mãos mobilizadas. A cada plano, a personagem sofria de paralisação forçada em um braço diferente, o que de forma alguma impedia o seu desempenho comunicativo no mundo virtual. Desta forma, em suas telas, Margô camufla o vazio, alimentando peixes imaginários, criando relações inexistentes, escrevendo frases para robôs online full time.

Aquele quadrado, em forma de tela e de vida, torna-se sua realidade em pixels, sem muitas perspectivas ou escapatórias. Ali é tudo descartável: um cardápio de pessoas solitárias, que projetam seus desejos e carências em perfis de redes sociais. Todos esbanjam tempo para preencher o vazio da existência, o que torna insuportável lidar com qualquer pessoa ou situação da esfera real. O silêncio e a paralisia fazem parte dos destinados à solidão. No escuro, na incompreensão, esse alguém só se sustenta a partir do olhar e da resposta de um outro qualquer. Os únicos requisitos para uma pessoa se tornar companhia é ela receber projeções e ser capaz de se tornar um personagem que satisfaça parcialmente as expectativas do outro incansável, por trás das telas, com o braço imobilizado, criando sua vida.

Segundo Margô, basta formatar a máquina que a vida torna-se mais simples. Já o ser humano vem sem prescrição ou manual, sendo uma máquina fadada ao fracasso. Aquela expressão "o fracasso dá caráter" é diluída em uma rede de solitários sedentos em colocar sentido em sua tela, ou melhor, sua vida. Com o cardápio online de perfis, contatos evasivos, alguns pertinentes para os momentos - cada vez mais prolongados - de solidão, quem é que vai se preocupar em se aprofundar em si mesmo? Quem vai abrir mão de aproveitar o sol à beira da piscina para mergulhar em suas contradições e limitações?

Um dos maiores temores do solitário é se identificar na solidão do outro. Incapaz de lidar com seu vazio e incompletude, o ser humano opta por não enxergar a dor de ninguém. Assumir os fracassos seria um preço muito alto para lutar contra a solidão. Assim, com o braço enfaixado, na vida quadrada, repleta de filtros, o ser humano prefere a companhia das máquinas.



Uma observação pertinente (ou não): após a minha sessão, um homem de uns 30 anos pediu ao gerente do cinema a devolução do ingresso argumentando que a qualidade da imagem era muito ruim. "A proposta do filme é essa", explicou o homem. Revoltado, o espectador frustrado disse que não era possível que, em 2014, ainda passassem filme no cinema sem a qualidade full HD.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

.

Uma espetadela
fininha
não sei
em qual lugar.

Doeu tudo
de dentro
pra fora.

o dente tremeu
sem esfriar.
não sou médico,
não entendo
de doença
e nem sei adivinhar.
Pode não ser
nada
sério
grave ou letal
quem sabe
tudo inventado
como minha morte