sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Algumas doses

Acabou-se com um atraso de anos e incontáveis mágoas presas. Daquelas difíceis de colocar pra fora, nem com uma porrada na cara aquele bolo de sentimentos misturados era capaz de construir-se em uma frase compreensível. Durante o tempo o açúcar cristaliza, já o amargo vira pus, infecção não diagnosticada, escondida embaixo de muitas camadas de pele que camuflam o cheiro podre de palavras não ditas, verbos inexistentes e lençóis amarelados esperando a hora de serem jogados fora.

Não sabe como decidiu que havia se atrasado para ir embora. No entanto, quando foi, pegou tudo que havia construído durante anos e partiu. Tudo se resumia a quase nada. Anos construídos por afetos destruídos em poeira de apartamento miúdo, em obra inacabada que impregna os olhos de cisco, deixando a realidade turva. Colocou o que restou de tanto tempo, o que havia sido salvo pelo mofo e decidiu seguir. Apesar de todas as cores e fotos lembrarem o atraso, estava cansada de ter perdido a hora.

Era a hora de seguir. E resolveu colocar a cabeça para esquecer toda uma vida. E está nessa até hoje. Segue na luta, tirando o pó, contrariando as lembranças, as músicas, as expectativas. Insiste em aprender a ser só e a reaprender a caminhar. Toda vez que acha que se livrou das mágoas, vira algumas doses de cachaça para lembrar que a dor faz parte de si. Na tristeza se reconhece e se abastece. Desce mais uma dose de cachaça para melhor instruir-se na tarefa de viver.