quarta-feira, 29 de julho de 2015

A dose do santo

Sempre ouvi dizer que dose de cachaça não se pega de ninguém: não se rouba nem um tico sem pedir licença. Cachaça é pessoal, na dose exata do santo e de sua oferenda. Quem bebe a dose de cachaça dos outros padece na vida. Já quem divide sua garrafa generosamente garante amigos verdadeiros, capazes de compartilhar um momento intenso de encontro com o céu. Para isto, estava guardando uma das minhas preferidas, a Maria Izabel, autêntica, com nome de mulher charmosa. E não é que minha garrafa sumiu? Ela tinha destino certo, de agregar amigos e de agradar os santos, no entanto, um desalmado levou-me inteira. Fiquei sem o gosto docinho na boca, à espera de mais uma viagem à Paraty, terra da danada. E quem tomou? Não me interessa. O santo cuida deste Zé ruela melhor do que eu.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Para a avó Jandira


Ela nasceu em um reino encantado que até hoje não recebeu nome. Dizem que fica na região de Andaluzia, na Espanha. Talvez por isso, em sua casa, há flores e azulejos por toda parte. Em seu corpo, as rugas fininhas e a pele alva vão criando um caminho longo, com nascente desconhecida. A memória apagou os primeiros anos de vida daquela senhora de seus mais de 80 anos. Quando perguntavam sobre sua mãe, ou sua história de vida, ela pegava o leque florido - com firmeza - e começava a se abanar. Logo, uma lágrima rolava e encontrava um atalho no meio da pele macia, com marcas do tempo e contornos que misturam uma história oculta entre a Espanha e Brasil. No meio de tudo, estava ela, sempre atenta pra não perder mais nenhum pedaço de sua trajetória. Assim, o mecanismo de defesa foi manter o rosto sério, sempre em alerta. Olhinhos brilhantes, uma serenidade infinita, e mãos suaves de quem é capaz de abraçar o mundo - além dos filhos, netos e bisnetos-, seguindo a correnteza do tempo, à margem do rio, e pedindo a Deus para que sua fonte nunca seja capaz de secar; esteja ela onde estiver.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Novo amor

Todo amor começa no Recife ou em Olinda. Nos becos e ladeiras, à margem do Capibaribe, na orla de Boa Viagem, o som é sempre de encontro. Há uma brisa quente que sopra paixões. Assim, até o mais descrente torna-se absolutamente louco e irracional diante um outro ser, em um sentimento que ferve.

No Recife e em Olinda, as pessoas andam nuas, por maior que seja a quantidade de roupas que elas estejam usando. Não importa. Os corpos gritam, os sentimentos fluem e abraçam até alcançar o mais profundo nó entre os peitos suados, respingados de palavras cuspidas.

Fala-se de dor o tempo inteiro, pois, nesta terra, se reconhece, sem medo, este sentimento que predomina após o amor. Todos sabem que não há tempo previsível de cura, nem receita certa. Por isso, abrem uma cachaça porreta para afastar os maus pensamentos e reunir boas companhias. Também é constante a presença de um abraço pernambucano que chega de surpresa, com mais força do que as pernas das passistas de frevo, e com a precisão das alfaias do maracatu.

Enquanto isso, a brisa continua quente, sem dar refresco. Chega a dar um nó na garganta, talvez, por saber que os dias em Pernambuco são curtos; ou os pernambucanos e seus lugares são longos e grandes demais para uma simples visita. Porém, o alívio prevalece, pois a angústia e a mágoa voam em Olinda, mais precisamente em direção ao mar. Assim, podemos rir, falar bobagem, até se pegar totalmente paralisada com o sotaque cantado da terrinha.

De repente, tudo é pausa. Tudo é a voz daquele recifense na Bodega de Véio. Não tem jeito. Sempre que venho, ali estou, e garanto que nunca havia o encontrado. E desta vez, ele estava; e eu também. Ô, sorte. Encontro marcado? Talvez. No entanto, prefiro acreditar na beleza do acaso.

Eu, vidrada com sua guia de Xangô, com sua camiseta celebrando Chico Science, e com aquele sotaque irresistível invadindo todos os cantos de Olinda, não conseguia disfarçar o encantamento imediato. Era incapaz de falar, apenas de ouvir. "Pernambucana?", perguntou. Antes que eu pudesse projetar uma resposta, ele completou: "se depender de mim, daqui você não sai". E pronto. Resolvi admitir que sempre fiz parte dali.

domingo, 22 de março de 2015

Luto

Quando Pedro resolveu ir embora, levou minha motivação de acordar para vê-lo de olhos cerrados, até o momento exato em que o despertador iria forçar aquelas folhas verdes esvoaçadas a caírem no mundo, carregando aquelas pernas finas, que mais pareciam de mulher. Motivos de implicância garantiam as gargalhadas cotidianas, a cumplicidade e os silêncios acolhedores. Um amigo, sim, companheiro de vida, de tudo. Um irmão.

Reconhecia na sua insanidade uma coerência absurda. Fazia-me entender que seguir em frente é sempre a melhor forma de perder-se dos fantasmas. E agora, Pedro, seguir em frente sem você é possível? Sinto todos os nossos fantasmas, inseguranças e neuroses percorrendo nossa casa. E você com aquela mania de deixar a porta aberta para circular o ar, ventilar. Você sabe o quanto isso me irritava. Tentava disfarçar às vezes, para não ser chata, mas convenhamos que a porta fechada sempre foi o mínimo de privacidade que gostaria de usufruir. Enfim, que babaquice, não é o momento para debatermos essa questão.

Agora que você, meu irmão sensível, capaz de sentir toda a dor e toda a felicidade do mundo ao mesmo tempo, que vibrava por um amigo como se estivesse fazendo-o por um filho, desapareceu, as palavras fogem. As reflexões e leituras diárias desaparecem, com todas as referências. Tábula rasa, com lágrimas congeladas. Resolvo escancarar todas as portas imaginando sua presença e tentando sentir o bem-estar trazido por aquele vento abafado que adentrava nossa sala.

Queria eu ter feito isso mais vezes, me posicionar de frente à porta, ser surpreendida pelo vento nas costas para lembrar da sua gargalhada entrando em casa. E os apelidos diários criativos que duravam alguns minutos na nossa memória, mas agora marcam a ferro meu coração. Aquela história de sua gargalhada no rádio, seu bom humor na minha vida, sua presença ao meu lado era toda verdade. Completamente louco isso tudo, como nós dois, em nossa dinâmica da maluquice, nos compreendíamos e nos amávamos incoerentemente. Nada fazia sentido, e agora há a maldita dor física encravada no peito. Ele, que sempre conseguiu tocar nas minhas feridas mais profundas, não está mais por aqui para achar o ponto de tensão e mexer insistentemente para tirar os nós e me fazer sorrir. Amputar a melhor parte da sua vida é uma experiência que não desejo a ninguém.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Mulheres passarinhas


Ainda não é 8 de março, mas já é Dia Internacional da Mulher. A cada dois minutos, cinco mulheres são espancadas no Brasil. Na TV, as propagandas de cerveja colocam corpos esculturais gelados à disposição dos homens. As curvas em formas de peitos e bundas passam servindo a bebida, sendo alvo dos olhares de “admiração” e “desejo”. A mulher-objeto não tem voz, ela é instrumento sexual, fetiche, apesar de não se colocar nessa posição, não se sentir à vontade com o assédio ou simplesmente detestar qualquer tipo de abordagem sexista.

Enquanto o comercial anuncia o corpo perfeito e vende cerveja para o gênero masculino (ignorando completamente que as mulheres também são consumidoras de bebida alcoólica), uma, a cada cinco mulheres, considera já ter sofrido “algum tipo de violência de parte de algum homem, conhecido ou desconhecido”. Algumas não sabem explicar o tipo de agressão: muitas vezes, a hostilidade é silenciosa, em locais onde o machismo é questionado, porém, não combatido de maneira eficaz, como em ambientes de trabalho. O Brasil, por exemplo, representa uma das mais desiguais relações entre gêneros: em 2013, o Índice Global de Desigualdade de Gênero, apontou que os homens ganham aproximadamente um salário 30% maior do que o das mulheres com o mesmo grau de instrução e a mesma idade.

Também relacionado ao universo de emprego, apesar de proibido por lei, quantas companheiras já não ouviram histórias de demissão após o retorno da licença-maternidade ou já foram questionadas em entrevistas de trabalho se pretendem ter filhos? A famosa dupla-jornada não é bem vista pelo patrão. Não importa se as mulheres dedicam-se cerca de 21 horas por semana às atividades domésticas, enquanto os homens gastam no máximo 10 horas cuidando do lar. Também não interessa se todos os seres humanos dependeram de alguma mulher para colocá-lo, aqui, neste mundo. A lógica do machismo predomina e avança.

Quanto às relações afetivas e sexuais, a mulher, mais uma vez, é colocada no papel de objeto. No início de 2015, um dos principais sites brasileiros colocou no ar a seguinte enquete: “Você acha que o beijo forçado no carnaval é natural?”. A própria pergunta já desmascara uma lógica asquerosa de que as relações são movidas à força, em uma dinâmica desigual e criminosa. No mesmo período, uma marca de cerveja criou diversos slogans que estimulam a violência sexual, com dizeres do tipo “esqueci o não em casa”. Esse é o machismo encravado, regulado e legitimado pelos nossos governantes, pela nossa imprensa e, finalmente, pela nossa própria sociedade.

A construção dessa dinâmica de forças, em que o gênero feminino é sempre subordinado, ganha ainda mais relevância entre quatro paredes. Em mais de 80% das agressões sofridas por mulheres, o marido ou o namorado é o criminoso. Assim, a vida privada torna-se central na luta contra o machismo. Entretanto, as agências publicitárias ignoram essa realidade e ainda apelam para campanhas em comemoração ao dia da mulher, levantando a bandeira do consumo, da vaidade e da valorização daquela que cuida do lar. Existem, sim, donas de casa, mulheres vaidosas, consumistas, assim como as socialistas, educadoras, economistas, engenheiras, atrizes, vendedoras, atletas, médicas, militantes, pesquisadoras, magras, gordas, altas, negras, morenas, louras, ruivas, baixas, entre infinitas categorias incapazes de abranger o imenso universo feminino. Desta maneira, nada ou ninguém conseguirá representar a diversidade do gênero feminino, a particularidade de cada mulher, seu desejo mais profundo e seu direito de ser respeitada. Reconhecendo tantas diferenças, nós mulheres devemos sempre nos lembrar: toda mulher é minha amiga, mexeu com ela, mexeu comigo. Machistas não passarão! Nós, passarinhas.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Foi-se carnaval

Ainda é terça, mas já parece domingo. A voz que deveria pronunciar que o carnaval acabou não aguenta mais cantarolar nenhuma marchinha alegre, está completamente rouca e falha. Cansou-se de sorrir e de se expor por aí. Perdeu-se nos pontos de ônibus à procura de um transporte público que a levasse para casa, não encontrou nenhum táxi, viu estações de metrô fechadas e teve que se contentar com o trajeto a pé. 

A rua foi seu lar. Assim, em cada avenida sambou completamente fora do ritmo, tentando manter o cílio postiço no devido lugar, enquanto a cola grudava em seus dedos e em sua fantasia customizada. Maldita hora que recusara a aprender truques de maquiagem com sua mãe. Porém, jamais imaginou que sentiria falta de uma estratégia de fixar os cílios de pavão, combinando com sua fantasia de paetê azul e penachos que a faziam coadjuvar um show de Ney Matogrosso, em pleno centro da cidade.

Ô, pássaro formoso! Na verdade, não lembrava se estava de pavão na Gamboa ou em Madureira, ou talvez, quem sabe, havia sido em uma das passagens pelo Mam? Mas quem se importa? Usou tantos adereços que perdeu-se entre plumas. Todos os dias viraram um bloco carnavalesco em que o desencontro foi a grande graça. A memória, prova de fracasso. O fracasso, por sua vez, status de sucesso.

Tentava ouvir os sopros, no entanto, suas pernas cansadas mal conseguiam acompanhar aquele insistente surdo de primeira. E aquela batida não permitia localizar qual era a música tocada pelo bloco. A percussão cadencia a multidão, mas confunde a cabeça do indivíduo. Neste momento de perdição, quando não sabia o que fazer, segurava uma serpentina e a jogava o mais longe possível, "em direção ao futuro", sonhava.

Cada fita colorida, em tom pastel, numa dissintonia com as saias de tule, os strass, purpurinas e adesivos nos olhos de cada mulher, e as tiaras de flores vibrantes, sumiam no meio da multidão. Não importava. A sua maior diversão era abaixar e procurar os restos de cada serpentina jogada. Aquele papel carnavalesco ficava, para a maioria das pessoas, obsoleto em segundos. Como um jornal do dia anterior, que hoje não serve para mais nada.

Percebeu que as coisas sem utilidade a interessavam muito. E enquanto todos seguiam o bloco e tentavam acompanhar as músicas, - mesmo sem saber cantar nenhuma parte da letra - ela entreteu-se na dinâmica de jogar a serpentina, observar seu destino e, logo, correr atrás dos resquícios do papel. E pronto. Construiu seu cordão com tiras pisoteadas, molhadas de cerveja, manchas de batom e de brilhos. Após a última batida do bloco e exaustão do corpo, resolveu seguir para casa, já arrependida de se despedir precocemente do carnaval. Para evitar a nostalgia antes mesmo da chegada da quarta-feira de cinzas, com jeito de domingo e dia dos finados, pegou o bolo de serpentinas e guardou em sua carteira. Caminhou serena, pronta para encarar o desengano e o retorno à realidade. Havia, assim, guardado para si os pedaços do carnaval.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Medo de amar

Enquanto alguns têm medo da morte, de doença, da violência urbana, outros temem viver. E se recusam a compartilhar um dos sentimentos mais nobres que o ser humano é capaz de conceber: o amor. Amar verbo intransitivo, amar verbo transitivo direto e indireto. Um mar de possibilidades de se transbordar, perder o norte, não se reconhecer, agir de forma inadequada, passar vergonha, não ser correspondido, esperar por uma resposta e, sim, muitas vezes, sofrer uma desilusão.

Há muitas possibilidades na vida de um amante, inclusive a dor da separação, do desencontro ou traição. No entanto, diante desta ameaça, vejo pessoas que já se apresentam pedindo desculpas por estarem impossibilidades de amar. Homens interessantes, sensíveis, que fogem de qualquer investida por dizerem que são incapazes de cicatrizar suas dores passadas. Assim, cria-se uma dinâmica de corações retalhados, muitos em pedaços frágeis, não dispostos ao risco de levarem um novo rombo.

Seremos amigos, então. Amigos? Amigos não somem, não ficam constrangidos à toa, não pensam antes de enviar alguma mensagem, procuram sempre, choram as mágoas... enfim, esse papo de amigo também não cola. Seremos apenas seres medrosos, daqueles que não conseguem se livrar do orgulho próprio, da nossa imagem consolidada no espelho de nossa imaginação como um ser independente e bem resolvido? A vida sozinha, sem dúvida, traz muitos benefícios, e um deles é justamente a percepção de que nascemos inevitavelmente para nos relacionarmos. A partir dos relacionamentos, sejam os de amizade, trabalho e pessoais, é que surgem os maiores frutos. O pacto em não se relacionar, ou  não se envolver, é uma escapatória para aqueles que não sabem perder o controle, têm desejo de dominar e, por isso, sofrem, na tentativa frustrada de domar os seus próprios sentimentos.

No entanto, para escapar da dor e manter a aparência de forte é preciso abrir mão de se envolver com as pessoas? Ou deve sempre se desculpar por não desejar gerar nenhuma expectativa? O que seria essa expectativa? Quem teme gerar expectativa no outro é quem automaticamente cria histórias mirabolantes na cabeça ao invés de viver o momento. Talvez, o homem da expectativa tenha criado um amor platônico, perfeito e eterno, em sua mente. E pronto. Aquilo lhe basta. Ou não lhe basta, mas ele segue vivendo, lutando para abrir as janelas da casa e deixar sua mente ventilar, enquanto afasta qualquer pessoa que insiste em se acelerar por perto do muro.

No plano real, qualquer palavra descuidada dita por uma mulher é um atestado de proximidade que equivale ao pior de todos os erros: esperança em criar vínculos, expectativas ou simplesmente a formação de uma relação afetiva. Deve-se temer ao pronunciar qualquer palavra, evitando a sentença do distanciamento, de ultrapassagem de todos os limites de uma relação superficial, virtual, de amizade, que jamais deveria ser interpretada de outra maneira. Assim, por mais que você esteja interessada em conhecer alguém, conversar, se aproximar, cautela nunca é demais. Nossa geração é a do medo de se entregar, de esperar, de sonhar e, mais ainda, do pânico da possibilidade remota de que surja alguém capaz de cuidar do nosso coração retalhado. Este, sim, o senhor dos medos e maior bônus, é para os poucos desprevenidos que aguentam muita emoção.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Para um amor no Recife

Não sei bem quando foi, o tempo marcava o compasso do frevo. Perdia-me facilmente na tentativa de acertar o passo, equilibrar a cachaça e buscar os seus olhos na multidão. De longe, ouvi seu sotaque pernambucano e aquilo foi suficiente para me apaixonar. Não deu em outra, você logo sacou que eu era sua. Aí veio o Hino do Elefante de Olinda, com aquele refrão poderoso, e eu chorei. Sabia que meu coração estava entregue. E aí, você sorriu. E mesmo gargalhando, perdido, pro ar, era incapaz de se desequilibrar. Conseguia seguir os passos do frevo, daqueles que só as passistas faziam, dando-me o atestado de pernambucano autêntico. Você se ajoelhava e subia com uma facilidade comovente, que me vidrou. Sim, entre confetes e serpentinas, venho te oferecer com alegria meu amor. Fitando seus olhos, sem vergonha nenhuma, gritando na sua cara que tudo é você na imaginação.

E pronto. Ali tudo ocorreu, tudo para que eu largasse minha vida rumo ao Recife. Apesar de sonhar em morar em Olinda, convenceu-me de que seria melhor nos instalar em Casa Forte, à beira do Rio Capibaribe. Cantando, nêguinho, a língua do frevo, zoando meu sotaque carioca, você me fez renascer nordestina. Assim, do Rio de Janeiro, não sobrou nada. E do nada fez-se tudo.

A sua mania de ouvir discos arranhados na vitrola de seu avô, o jeito que só você sabe declarar amor ao Capiba, os olhos marejados ao me ouvir cantar trêmula "Madeira que cupim não rói". E a paixão ao falar da música de sua terra, que, perdoe-me, virou um pouco minha também, de Chico, Karina, Mombojó, Academia da Berlinda, Siba, Eddie. Os olhos saltam quando você fala suavemente, e eu sinto as águas do Capibaribe entrarem em nossa casa, molhando as plantas. Cada vasinho de uma cor vibrante, como o domingo de carnaval, em que nos conhecemos. E faz tempo, mas foi ontem, e poderia ser amanhã.

O frevo, o mar quente de Boa Viagem, você rindo do meu medo de tubarão. E a gente decorando todas as canções pernambucanas. E o rufar das alfaias dos quatro cantos decorando as paredes da nossa casa. Sem querer, eu puxando o sotaque nordestino numa tentativa de pertencimento a algo que já havia me tomado por inteira. E assim foi, a cada dia, nossa rotina parecia um eterno carnaval. Caminhando no Marco Zero, no carro, no ônibus, era só frevo-canção, daquele que anuncia a saudade. E Capiba virou nosso amor, assim como a Nação Estrela Brilhante, os filmes de nossa cidade, O som ao redor, Era uma vez eu, Verônica, tudo. E tudo de nosso, agora, é nada. Só de lembrar da Bodega de Véio dói tudo, e, pra piorar, não posso mais me apegar a um frevo-canção. A vida é triste e cheia de dissabores, ensinou Capiba. Agora, não tento nem arrumar palavras para tanta distância, tantos quilômetros, tantos sonhos. Não há cachaça que tire meu amargor. Para meu amor, no Recife, haja aperto para estancar o sangue e limpar a ferida. Com atraso, perdi o tempo do maracatu, e a saudade me embaraça até hoje. Mas continuo tentando, sem sucesso, pronunciar a minha dor.


terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Perda

Chorava feito uma criança recém-desmamada, sem nenhuma estrutura, sem nenhum pudor em exibir-se num buraco sem fundo. As lágrimas pareciam já secas, mas as expressões dramáticas não paravam de evoluir. Quem passava por perto ficava constrangido em interromper aquele encontro solitário e preciso com a tristeza. Porém, o barulho daquele homem entregue ao pranto fez com que uma mulher parasse tudo, numa tentativa de ajudar o desconhecido.

Não fazia ideia de quantos anos aquele garoto ou homem teria. Aquela posição curvada, impotente, transformava-o em um adolescente. No entanto, as marcas e a barba no rosto entregavam uma certa experiência de vida. Por que chorava copiosamente, ali, no meio da rua, na frente de todos? Ele mal conseguia respirar e, menos ainda, pronunciar algumas palavras. Alguém morreu?, perguntou a mulher, com medo de ouvir uma história trágica de quem havia perdido toda a sua família em algum acidente. Nessas horas, só conseguia pensar no pior.

Ele pausou o choro e tomou ar, negando a morte de alguém próximo, mas alegando a sua própria morte. "Ela me deixou. Não tenho como viver sem a única pessoa que fui capaz de amar durante toda a minha vida. Jamais a esquecerei, sinto-me morto. Não aguento mais um dia desta ausência latente". Ouvir aquele apelo gerou um alívio na senhora, que mirabolava doenças incuráveis, tragédias, entre outras coisas que o tempo nem sempre cura. Ao tratar-se de desilusão amorosa, ela reviu um filme de seus 54 anos de amores e desamores entregues ao vento.

Não gostaria de contar suas próprias experiências, pois poderia parecer pedante, comparando as formas como cada um lida com a dor. Assim, em silêncio, resolveu abraçar o homem, com toda a força de quem criara sozinha três filhos para caírem no mundo, e não o largou mais. Foram minutos daquele abraço forte, marcando presença, até que o choro cessou. "Você já foi abandonada?", perguntou o rapaz. Sem incomodar-se com o tom invasivo, a mulher mal teve tempo de refletir quando as palavras interromperam seu lábios fechados: "E como. A vida é abandono, querido. Ou você abandona ou você é abandonado, uma dinâmica cruel e realista. Mas, digo sempre aos meus filhos, aproveite as perdas pronunciáveis. O que mais dói é o que a vida tira e a gente nem sabe colocar nome". Perdas sem nome, desaparecimentos que não são mortes, fugas incompreensíveis e dores na alma. Sim, a vida é capaz de nos tirar coisas ainda mais dolorosas.