terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Mulheres passarinhas


Ainda não é 8 de março, mas já é Dia Internacional da Mulher. A cada dois minutos, cinco mulheres são espancadas no Brasil. Na TV, as propagandas de cerveja colocam corpos esculturais gelados à disposição dos homens. As curvas em formas de peitos e bundas passam servindo a bebida, sendo alvo dos olhares de “admiração” e “desejo”. A mulher-objeto não tem voz, ela é instrumento sexual, fetiche, apesar de não se colocar nessa posição, não se sentir à vontade com o assédio ou simplesmente detestar qualquer tipo de abordagem sexista.

Enquanto o comercial anuncia o corpo perfeito e vende cerveja para o gênero masculino (ignorando completamente que as mulheres também são consumidoras de bebida alcoólica), uma, a cada cinco mulheres, considera já ter sofrido “algum tipo de violência de parte de algum homem, conhecido ou desconhecido”. Algumas não sabem explicar o tipo de agressão: muitas vezes, a hostilidade é silenciosa, em locais onde o machismo é questionado, porém, não combatido de maneira eficaz, como em ambientes de trabalho. O Brasil, por exemplo, representa uma das mais desiguais relações entre gêneros: em 2013, o Índice Global de Desigualdade de Gênero, apontou que os homens ganham aproximadamente um salário 30% maior do que o das mulheres com o mesmo grau de instrução e a mesma idade.

Também relacionado ao universo de emprego, apesar de proibido por lei, quantas companheiras já não ouviram histórias de demissão após o retorno da licença-maternidade ou já foram questionadas em entrevistas de trabalho se pretendem ter filhos? A famosa dupla-jornada não é bem vista pelo patrão. Não importa se as mulheres dedicam-se cerca de 21 horas por semana às atividades domésticas, enquanto os homens gastam no máximo 10 horas cuidando do lar. Também não interessa se todos os seres humanos dependeram de alguma mulher para colocá-lo, aqui, neste mundo. A lógica do machismo predomina e avança.

Quanto às relações afetivas e sexuais, a mulher, mais uma vez, é colocada no papel de objeto. No início de 2015, um dos principais sites brasileiros colocou no ar a seguinte enquete: “Você acha que o beijo forçado no carnaval é natural?”. A própria pergunta já desmascara uma lógica asquerosa de que as relações são movidas à força, em uma dinâmica desigual e criminosa. No mesmo período, uma marca de cerveja criou diversos slogans que estimulam a violência sexual, com dizeres do tipo “esqueci o não em casa”. Esse é o machismo encravado, regulado e legitimado pelos nossos governantes, pela nossa imprensa e, finalmente, pela nossa própria sociedade.

A construção dessa dinâmica de forças, em que o gênero feminino é sempre subordinado, ganha ainda mais relevância entre quatro paredes. Em mais de 80% das agressões sofridas por mulheres, o marido ou o namorado é o criminoso. Assim, a vida privada torna-se central na luta contra o machismo. Entretanto, as agências publicitárias ignoram essa realidade e ainda apelam para campanhas em comemoração ao dia da mulher, levantando a bandeira do consumo, da vaidade e da valorização daquela que cuida do lar. Existem, sim, donas de casa, mulheres vaidosas, consumistas, assim como as socialistas, educadoras, economistas, engenheiras, atrizes, vendedoras, atletas, médicas, militantes, pesquisadoras, magras, gordas, altas, negras, morenas, louras, ruivas, baixas, entre infinitas categorias incapazes de abranger o imenso universo feminino. Desta maneira, nada ou ninguém conseguirá representar a diversidade do gênero feminino, a particularidade de cada mulher, seu desejo mais profundo e seu direito de ser respeitada. Reconhecendo tantas diferenças, nós mulheres devemos sempre nos lembrar: toda mulher é minha amiga, mexeu com ela, mexeu comigo. Machistas não passarão! Nós, passarinhas.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Foi-se carnaval

Ainda é terça, mas já parece domingo. A voz que deveria pronunciar que o carnaval acabou não aguenta mais cantarolar nenhuma marchinha alegre, está completamente rouca e falha. Cansou-se de sorrir e de se expor por aí. Perdeu-se nos pontos de ônibus à procura de um transporte público que a levasse para casa, não encontrou nenhum táxi, viu estações de metrô fechadas e teve que se contentar com o trajeto a pé. 

A rua foi seu lar. Assim, em cada avenida sambou completamente fora do ritmo, tentando manter o cílio postiço no devido lugar, enquanto a cola grudava em seus dedos e em sua fantasia customizada. Maldita hora que recusara a aprender truques de maquiagem com sua mãe. Porém, jamais imaginou que sentiria falta de uma estratégia de fixar os cílios de pavão, combinando com sua fantasia de paetê azul e penachos que a faziam coadjuvar um show de Ney Matogrosso, em pleno centro da cidade.

Ô, pássaro formoso! Na verdade, não lembrava se estava de pavão na Gamboa ou em Madureira, ou talvez, quem sabe, havia sido em uma das passagens pelo Mam? Mas quem se importa? Usou tantos adereços que perdeu-se entre plumas. Todos os dias viraram um bloco carnavalesco em que o desencontro foi a grande graça. A memória, prova de fracasso. O fracasso, por sua vez, status de sucesso.

Tentava ouvir os sopros, no entanto, suas pernas cansadas mal conseguiam acompanhar aquele insistente surdo de primeira. E aquela batida não permitia localizar qual era a música tocada pelo bloco. A percussão cadencia a multidão, mas confunde a cabeça do indivíduo. Neste momento de perdição, quando não sabia o que fazer, segurava uma serpentina e a jogava o mais longe possível, "em direção ao futuro", sonhava.

Cada fita colorida, em tom pastel, numa dissintonia com as saias de tule, os strass, purpurinas e adesivos nos olhos de cada mulher, e as tiaras de flores vibrantes, sumiam no meio da multidão. Não importava. A sua maior diversão era abaixar e procurar os restos de cada serpentina jogada. Aquele papel carnavalesco ficava, para a maioria das pessoas, obsoleto em segundos. Como um jornal do dia anterior, que hoje não serve para mais nada.

Percebeu que as coisas sem utilidade a interessavam muito. E enquanto todos seguiam o bloco e tentavam acompanhar as músicas, - mesmo sem saber cantar nenhuma parte da letra - ela entreteu-se na dinâmica de jogar a serpentina, observar seu destino e, logo, correr atrás dos resquícios do papel. E pronto. Construiu seu cordão com tiras pisoteadas, molhadas de cerveja, manchas de batom e de brilhos. Após a última batida do bloco e exaustão do corpo, resolveu seguir para casa, já arrependida de se despedir precocemente do carnaval. Para evitar a nostalgia antes mesmo da chegada da quarta-feira de cinzas, com jeito de domingo e dia dos finados, pegou o bolo de serpentinas e guardou em sua carteira. Caminhou serena, pronta para encarar o desengano e o retorno à realidade. Havia, assim, guardado para si os pedaços do carnaval.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Medo de amar

Enquanto alguns têm medo da morte, de doença, da violência urbana, outros temem viver. E se recusam a compartilhar um dos sentimentos mais nobres que o ser humano é capaz de conceber: o amor. Amar verbo intransitivo, amar verbo transitivo direto e indireto. Um mar de possibilidades de se transbordar, perder o norte, não se reconhecer, agir de forma inadequada, passar vergonha, não ser correspondido, esperar por uma resposta e, sim, muitas vezes, sofrer uma desilusão.

Há muitas possibilidades na vida de um amante, inclusive a dor da separação, do desencontro ou traição. No entanto, diante desta ameaça, vejo pessoas que já se apresentam pedindo desculpas por estarem impossibilidades de amar. Homens interessantes, sensíveis, que fogem de qualquer investida por dizerem que são incapazes de cicatrizar suas dores passadas. Assim, cria-se uma dinâmica de corações retalhados, muitos em pedaços frágeis, não dispostos ao risco de levarem um novo rombo.

Seremos amigos, então. Amigos? Amigos não somem, não ficam constrangidos à toa, não pensam antes de enviar alguma mensagem, procuram sempre, choram as mágoas... enfim, esse papo de amigo também não cola. Seremos apenas seres medrosos, daqueles que não conseguem se livrar do orgulho próprio, da nossa imagem consolidada no espelho de nossa imaginação como um ser independente e bem resolvido? A vida sozinha, sem dúvida, traz muitos benefícios, e um deles é justamente a percepção de que nascemos inevitavelmente para nos relacionarmos. A partir dos relacionamentos, sejam os de amizade, trabalho e pessoais, é que surgem os maiores frutos. O pacto em não se relacionar, ou  não se envolver, é uma escapatória para aqueles que não sabem perder o controle, têm desejo de dominar e, por isso, sofrem, na tentativa frustrada de domar os seus próprios sentimentos.

No entanto, para escapar da dor e manter a aparência de forte é preciso abrir mão de se envolver com as pessoas? Ou deve sempre se desculpar por não desejar gerar nenhuma expectativa? O que seria essa expectativa? Quem teme gerar expectativa no outro é quem automaticamente cria histórias mirabolantes na cabeça ao invés de viver o momento. Talvez, o homem da expectativa tenha criado um amor platônico, perfeito e eterno, em sua mente. E pronto. Aquilo lhe basta. Ou não lhe basta, mas ele segue vivendo, lutando para abrir as janelas da casa e deixar sua mente ventilar, enquanto afasta qualquer pessoa que insiste em se acelerar por perto do muro.

No plano real, qualquer palavra descuidada dita por uma mulher é um atestado de proximidade que equivale ao pior de todos os erros: esperança em criar vínculos, expectativas ou simplesmente a formação de uma relação afetiva. Deve-se temer ao pronunciar qualquer palavra, evitando a sentença do distanciamento, de ultrapassagem de todos os limites de uma relação superficial, virtual, de amizade, que jamais deveria ser interpretada de outra maneira. Assim, por mais que você esteja interessada em conhecer alguém, conversar, se aproximar, cautela nunca é demais. Nossa geração é a do medo de se entregar, de esperar, de sonhar e, mais ainda, do pânico da possibilidade remota de que surja alguém capaz de cuidar do nosso coração retalhado. Este, sim, o senhor dos medos e maior bônus, é para os poucos desprevenidos que aguentam muita emoção.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Para um amor no Recife

Não sei bem quando foi, o tempo marcava o compasso do frevo. Perdia-me facilmente na tentativa de acertar o passo, equilibrar a cachaça e buscar os seus olhos na multidão. De longe, ouvi seu sotaque pernambucano e aquilo foi suficiente para me apaixonar. Não deu em outra, você logo sacou que eu era sua. Aí veio o Hino do Elefante de Olinda, com aquele refrão poderoso, e eu chorei. Sabia que meu coração estava entregue. E aí, você sorriu. E mesmo gargalhando, perdido, pro ar, era incapaz de se desequilibrar. Conseguia seguir os passos do frevo, daqueles que só as passistas faziam, dando-me o atestado de pernambucano autêntico. Você se ajoelhava e subia com uma facilidade comovente, que me vidrou. Sim, entre confetes e serpentinas, venho te oferecer com alegria meu amor. Fitando seus olhos, sem vergonha nenhuma, gritando na sua cara que tudo é você na imaginação.

E pronto. Ali tudo ocorreu, tudo para que eu largasse minha vida rumo ao Recife. Apesar de sonhar em morar em Olinda, convenceu-me de que seria melhor nos instalar em Casa Forte, à beira do Rio Capibaribe. Cantando, nêguinho, a língua do frevo, zoando meu sotaque carioca, você me fez renascer nordestina. Assim, do Rio de Janeiro, não sobrou nada. E do nada fez-se tudo.

A sua mania de ouvir discos arranhados na vitrola de seu avô, o jeito que só você sabe declarar amor ao Capiba, os olhos marejados ao me ouvir cantar trêmula "Madeira que cupim não rói". E a paixão ao falar da música de sua terra, que, perdoe-me, virou um pouco minha também, de Chico, Karina, Mombojó, Academia da Berlinda, Siba, Eddie. Os olhos saltam quando você fala suavemente, e eu sinto as águas do Capibaribe entrarem em nossa casa, molhando as plantas. Cada vasinho de uma cor vibrante, como o domingo de carnaval, em que nos conhecemos. E faz tempo, mas foi ontem, e poderia ser amanhã.

O frevo, o mar quente de Boa Viagem, você rindo do meu medo de tubarão. E a gente decorando todas as canções pernambucanas. E o rufar das alfaias dos quatro cantos decorando as paredes da nossa casa. Sem querer, eu puxando o sotaque nordestino numa tentativa de pertencimento a algo que já havia me tomado por inteira. E assim foi, a cada dia, nossa rotina parecia um eterno carnaval. Caminhando no Marco Zero, no carro, no ônibus, era só frevo-canção, daquele que anuncia a saudade. E Capiba virou nosso amor, assim como a Nação Estrela Brilhante, os filmes de nossa cidade, O som ao redor, Era uma vez eu, Verônica, tudo. E tudo de nosso, agora, é nada. Só de lembrar da Bodega de Véio dói tudo, e, pra piorar, não posso mais me apegar a um frevo-canção. A vida é triste e cheia de dissabores, ensinou Capiba. Agora, não tento nem arrumar palavras para tanta distância, tantos quilômetros, tantos sonhos. Não há cachaça que tire meu amargor. Para meu amor, no Recife, haja aperto para estancar o sangue e limpar a ferida. Com atraso, perdi o tempo do maracatu, e a saudade me embaraça até hoje. Mas continuo tentando, sem sucesso, pronunciar a minha dor.