domingo, 22 de março de 2015

Luto

Quando Pedro resolveu ir embora, levou minha motivação de acordar para vê-lo de olhos cerrados, até o momento exato em que o despertador iria forçar aquelas folhas verdes esvoaçadas a caírem no mundo, carregando aquelas pernas finas, que mais pareciam de mulher. Motivos de implicância garantiam as gargalhadas cotidianas, a cumplicidade e os silêncios acolhedores. Um amigo, sim, companheiro de vida, de tudo. Um irmão.

Reconhecia na sua insanidade uma coerência absurda. Fazia-me entender que seguir em frente é sempre a melhor forma de perder-se dos fantasmas. E agora, Pedro, seguir em frente sem você é possível? Sinto todos os nossos fantasmas, inseguranças e neuroses percorrendo nossa casa. E você com aquela mania de deixar a porta aberta para circular o ar, ventilar. Você sabe o quanto isso me irritava. Tentava disfarçar às vezes, para não ser chata, mas convenhamos que a porta fechada sempre foi o mínimo de privacidade que gostaria de usufruir. Enfim, que babaquice, não é o momento para debatermos essa questão.

Agora que você, meu irmão sensível, capaz de sentir toda a dor e toda a felicidade do mundo ao mesmo tempo, que vibrava por um amigo como se estivesse fazendo-o por um filho, desapareceu, as palavras fogem. As reflexões e leituras diárias desaparecem, com todas as referências. Tábula rasa, com lágrimas congeladas. Resolvo escancarar todas as portas imaginando sua presença e tentando sentir o bem-estar trazido por aquele vento abafado que adentrava nossa sala.

Queria eu ter feito isso mais vezes, me posicionar de frente à porta, ser surpreendida pelo vento nas costas para lembrar da sua gargalhada entrando em casa. E os apelidos diários criativos que duravam alguns minutos na nossa memória, mas agora marcam a ferro meu coração. Aquela história de sua gargalhada no rádio, seu bom humor na minha vida, sua presença ao meu lado era toda verdade. Completamente louco isso tudo, como nós dois, em nossa dinâmica da maluquice, nos compreendíamos e nos amávamos incoerentemente. Nada fazia sentido, e agora há a maldita dor física encravada no peito. Ele, que sempre conseguiu tocar nas minhas feridas mais profundas, não está mais por aqui para achar o ponto de tensão e mexer insistentemente para tirar os nós e me fazer sorrir. Amputar a melhor parte da sua vida é uma experiência que não desejo a ninguém.